domingo, 31 de dezembro de 2017

Adília Lopes

"Os papelotes

Nunca choraremos bastante
termos querido ser belas
à viva força
eu quis ser bela
e julguei que para ser bela
bastava usar canudos
pedi para me fazerem canudos
com um ferro de frisar e papelotes
puxaram-me muito pelos cabelos
eu gritei
disseram-me para ser bela
é preciso sofrer
depois o cabelo queimou-se
não voltou a crescer
tive de passar a andar com uma peruca
para ser bela é preciso sofrer
mas sofrer não nos faz forçosamente belas
um sofrimento não implica como consequência
uma recompensa
uma dor de dentes pode comover a nossa mãe
que para nos consolar sem saber de quê
nos dá um rebuçado
mas o rebuçado ainda nos faz doer mais os dentes
a consequência de um sofrimento
pode ser outro sofrimento
a causa é posterior ao efeito
o motivo do sofrimento é uma das consequências
do sofrimento
os papelotes são uma consequência da peruca"

Ano Novo


sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

pensei que podiamos
fazer nascer
um novo sol.


cresci
nenhuma resposta me serve
se não pergunto por quê
(não estás aqui)

eu não quero uma dor que me leve

leve

cresci
dentro de uma coisa morta
eu transporto a saudade
(de ti)


eu que tanto desejei
correr o mundo

  fui descobrir
        que o mundo
se situa no lugar
         onde os teus lábios
pousam.

e vi o mundo
    correr de mim.


quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

isto podia ser eu a amar-te.
mas depois um dia chuvoso
ou o gás do isqueiro a acabar
as pontas dos dedos dormentes.
a ausência de vontade
bugigangas na mesinha de cabeceira.
podia ser amor
mas era um peixe sem cabeça
pendurado na parede do snack bar
pedes um prego e um fino
e não há qualquer magia
na metafísica da normalidade.
afinal tu nem sabes chorar
e lambes os dedos
quase saciado.
um desconhecido acende-te o cigarro
podia ser a onda mais forte da maré cheia
mas o barulho da cidade
o atropelo constante das emoções
esmagadas contra as vitrines do tempo.
podia ser um amor para a vida toda
mas a vida toda escorregou pela valeta
com a pica do teu cigarro
por entre as lágrimas que não conheces.
isto podia ser eu a dizer-te amo-te
mas eu tenho tanta tanta pressa
de ver o nada acontecer.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

a tua boca perfeita
na insinuação da
chuva.

e a tua pele
toda a tua pele
a gritar que fugisse.

ah meu amor!
que claros são os dias
sem esperança.

imaginar que inventámos
palavras que não se podem
dizer e que o silêncio
é a forma de habitares
eternamente
a minha cegueira.




daqui a alguns meses
terás esquecido que existo

os dias mais longos, só um raio
de luz a atravessar-te das coxas até
ao sorriso numa manhã inclinada.

um relógio sem pilha, já esqueceste
o meu nome

daqui a alguns meses.
as minhas mãos na tua montra
de afectos, sem lugar certo.

uma morte sem nome
e o meu coração deserto.



domingo, 24 de dezembro de 2017

deixa lá.
a vida que é uma batalha sem fim.
talvez eu consiga esquecer-me de ti
quando já nem sequer  me lembrar de mim.


domingo, 17 de dezembro de 2017

Fim

entre o que me deste
e o que me tiraste
talvez eu não possa
nunca mais
equilibrar-me em mim.
um tempo que nos fosse mais fácil.
ou o vento a levar-nos os cabelos para sul

em confluência com as marés.

um adeus que não sabes dizer
porque é domingo.



quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Mostra-me de que é feito o silêncio.
a chuva, o limbo dos teus lábios.
como caber entre dois dedos.


sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Um gin. O mais barato.

cantas-me as canoas do tejo
enquanto fingimos fumar charros
de mãos fechadas.
encosto-me à porta do prédio
sabes que só consigo ouvir
com os olhos postos no nada.
imagino que os meus olhos brilhem
na mesma medida em que brilham
os faróis dos carros que descem a rua.
respondo-te com josé mario branco
e tu percebes. que a minha dor é muito maior que eu.
sorrimos, sorririamos na presença de qualquer animal morto.
canto contigo um fado inventado antes de mim.

entramos num bar, o empregado olha-me enquanto brinca com os copos.
pergunta-me o que vou querer.
para a vida? um gin. o mais barato.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

saberás ainda cantar as velhas canções.
os ouvidos encostados às mãos
e a nudez cada vez mais pura
o olhar inócuo sobre as estátuas.

vídeo-musas arquitetadas em mesas de café.
chávenas quentes e nada para dizer.



quinta-feira, 2 de novembro de 2017

diz-me que nada de perdeu afinal,
que os pássaros pousam nas romãs
e as romãs se rompem na boca dos assassinos.

que a noite rompe língua a língua
a traqueia dos amantes.



diz-me que não cheguei a tempo. podes dizer, entre a chuva que é fraca, podes dizer. não chegaste a tempo. ou o tempo existe demais para ti. ou és de menos para o tempo. podes dizer, dói-me os joelhos. as mãos. as articulações do coração. o corpo inteiro na boca. podes dizer.



fotografia: daqui

domingo, 29 de outubro de 2017

terça-feira, 24 de outubro de 2017

não ter um tempo mais curto
uma luz de encher as horas.

não ter um dia mais
do que os mortais.



segunda-feira, 23 de outubro de 2017

pergunta-me onde dormiremos esta noite
eu dir-te-ei que mercúrio nos atravessou
como ar quente, dos lábios à garganta

pergunta-me como se alinham as fragilidades
do peito às coxas, que caminhos nos restarão ainda?




fotografia: daqui

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

esta sensação

de estar a caminhar há séculos

os pés em ferida

e o coração

ai o coração, meu amor

tão longe de encaixar dentro do peito.


quinta-feira, 19 de outubro de 2017

deixar de ser luminescência

deixar de ser antecedência

cadência das mãos

peito abaixo.





sexta-feira, 13 de outubro de 2017

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

eu sei

que o teu amor
foi uma canção
de embalar gatos

e que, à noite,
as vozes se precipitam
nas janelas

eu sei

que a imortalidade
sabe ao ácido das orquídeas
e que esta nuvem só
serve para nos distanciar
do princípio


um mundo
em que tudo isto
fossem instrumentos da morte

diz-me que estás intacto
e que a febre não te roeu
os lábios

que tens ainda uma boca imensa
e dedos de agarrar livros
por dentro.

foto daqui

terça-feira, 22 de agosto de 2017

só para dizer
que a mim também me dói

e tenho um perfume novo
para enganar o vento




sexta-feira, 11 de agosto de 2017

onde existia ternura talvez exista um gato
a espreguiçar-se na sombra da mesa pequena

e talvez uma bala entre as órbitas
ou o fato que escolheste para levar no caixão
assim que abres a gaveta.


sexta-feira, 28 de julho de 2017

eu que temo ser
refrão de amor
para estremecer
em teu redor

se eu quiser sair
das tuas mãos
e deixa-me cair
nas tentações

da morte e do abandono.

de repente, vejo mal ao perto e ao longe.
e a tua boca é tudo o que me foge.



quarta-feira, 26 de julho de 2017

o vento é tão forte e o fogo alastra-se a tudo o que somos
e eu já nem sinto saudade
entendes?
já nem sinto saudade.


sexta-feira, 30 de junho de 2017

ouve. descalcei-me e despi-me.
tenho a alma em carne viva. ouve.
descobri o lugar onde bate o coração.

fotografia: daqui

"Remember her hair as it shone in the sun,
The smell of the bed when I knew what she'd done.
Tell yourself over and over
You won't ever need her again"


quinta-feira, 29 de junho de 2017

ouvir citações de brecht no elevador.

bem melhor do que a tradicional leitura "6 pessoas / 400 kg"

está ganho o dia.


queria ainda dizer-te:

o marulhar dos papéis dentro do bolso lembra-me a tua voz
lembra-me a tua boca encostada aos meus dedos
como que a apagar a linha da vida, tão pouco linha
tão pouco vida

mas queria ainda dizer-te:

talvez não te venha à memória nenhum dos nossos abraços
e eu carregue infinitamente essa ausência.


fotografia: Orkun Mungan

é preciso encontrar uma palavra qualquer no meio da tralha. remexer os maços de tabaco vazios, a carteira, os bolsos, levantar os tapetes, pendurar os cobertores na janela, raspar a tinta das paredes, é preciso encontrar uma palavra que nos ligue. eu a ti, tu a mim, no meio da tralha que é preciso deixar para trás. é preciso, digo-te, é preciso o teu corpo. mas mais do que o teu corpo, é preciso a tua essência, todo o teu ser, a linha do teu corpo. no meio da tralha eu preciso encontrar-te. encontrar uma palavra que me diga estás vivo. que me diga estou viva. e é preciso, é mesmo preciso abrir os olhos mais uma vez.



encosta o ouvido à parede, para ouvir falar de amor como se não houvesse trânsito lá fora. como se a miséria do quotidiano fosse evitável. sabe saltar os dias como quem salta pedras no riacho ou como quem ergue uma espada invisível de cansaço e regresso. e ama como quem limpa a baba depois de acordar ou abre uma janela para um rua sem sol.

fotografia: kjeksomanen

quarta-feira, 28 de junho de 2017

a esta hora a rua em frente está vazia.
o tempo faz-te uma festa na cara (imagino)
o que fazer de um amor do qual só sobrou raiva
o que fazer desta rua sem vida onde o tempo
tem mais ternura que os olhares dos homens?



olhar para dentro
olhar por dentro
da dimensão dos astros
ou a pele nem macia
nem áspera
ou nem a pele
a olhar por dentro
as mãos a arder
de medo, de vazio
restolho do príncipio
do amor




quarta-feira, 14 de junho de 2017

onde tu tocas há um silêncio que dói
um lugar onde já não são mãos
e as línguas não servem para atear incêndios





quarta-feira, 7 de junho de 2017

dizer-te o que é preciso
é dizer o silêncio
ser a ave que repousa
na claridade do sal



sexta-feira, 26 de maio de 2017

quando o esquecimento era só
uma rua que começavas a descer
e nem sabíamos falar a nossa língua



quarta-feira, 10 de maio de 2017

tira-me de mim. tira-te de mim.


talvez exista perda em todos os poemas
e o filme não tenho começado no princípio
as mãos talvez tenham chegado só no intervalo

acho que percebi o que me dizias.

deixar o coração à sombra
é isso.
o coração à sombra.


terça-feira, 9 de maio de 2017

no quarto

recortarias a infância
em pequenos pedaços de papel
imaginário
um corte fundo nas aves do princípio
do mundo

no quarto

a inventar formas anatómicas
formas astrológicas de ser feliz
as mãos a apertar com força
o que sobrou dos olhares
que derramaste janela abaixo

no quarto

o incêndio e a mágoa
as ânsias e os desejos
a contemplação do afogamento.



segunda-feira, 8 de maio de 2017

pensar que é possível sê-lo sozinho

para lá de todas as concepções

a voz rouca da segunda-feira de manhã
ou todas as janelas da casa por abrir

pensar que é possível ser-te sozinha

e que

talvez o mar nos chegue ao coração


se eu soubesse ao menos
distinguir as cores da inanição
as sombras nítidas do desassossego
um pássaro que pousa no limite
do telhado
e faz estremecer


o mundo



fotografia: Pierre Manly

sexta-feira, 5 de maio de 2017

quarta-feira, 19 de abril de 2017

estar aqui
eu
não estar aqui
eu
o mundo igual.
eu sem mim
o mundo igual.



fotografia: Rob Cartwright




terça-feira, 18 de abril de 2017

nunca aprendi nada
.nem quero.
serei sempre estes
olhos vivos das crianças
esta inocência lisa
dos inocentes.



quinta-feira, 13 de abril de 2017

apertada
curva à esquerda
a do teu coração



fotografia: Marissa Walker

nunca quis ter um pássaro.
quis sempre ser um.




The Departure (LaRuephotography)

Às vezes é só isto.
às vezes nem isto.



podia ser a última luz
da última rua da tua cidade
ou o último passageiro a sair
do vagão metálico carregado
de cansaços.
podia ser o último cigarro do maço
a última página de um livro roubado
na casa de um amigo.
mas é uma flor a cair, é a primavera
a ameaçar chover.



segunda-feira, 10 de abril de 2017

e uma canção há-de sussurrar-te assim:

belo é tudo o que nasce torto
entrega ao meu peito o que em ti está morto.

e tu hás-de gostar de mim.


sexta-feira, 7 de abril de 2017

blogger

tema.

simples.
nada cura a falta de querer.

o abandono é só uma forma de tornar denso o nevoeiro.

e os teus olhos não cabem em nenhuma carta de amor.
é difícil acreditar hoje que os teus dedos
já souberam de cor as minhas ânsias


fotografia: Anders Petersen

seremos cada vez mais velhos
e
estaremos cada vez mais longe
mapa astral dirão os crentes
destino, fé, coincidência
falta de alternativa
escolha, dirão os céticos

estaremos cada vez mais cansados
sem paciência para os sonhos
dos outros.

sem vontade de abrir os olhos
e tocar com ternura a falta
que sentem de nós.



fotografia: Tatiana Domazetovich

amanheço sem qualquer glória. as mãos dormentes, tenho dificuldade em segurar o copo de café. todas as vozes me irritam mas sorrio. afinal, só faltam uns 40 anos ou o raio que parta mais a esperança média de vida dos covardes.



quinta-feira, 6 de abril de 2017

é o que é
não o que tinha que ser.


a mão que segura o rosto
  o fósforo que acende o cigarro
    os dedos que se afundam nos dias
     e os lábios que não sabem onde dormir.



fotografia: John Perivolaris

disseste: um dia vou fotografar-te.

e eu um dia vou esquecer-me.



eternal sunshine of the spotless mind

agora que encostamos finalmente
todas as cadeiras à parede
e no estuque já só sobram pregos
ligeiramente dobrados, ligeiramente
enferrujados, como os nossos ossos
mais antigos.
agora, que da cal sai um leve som
de assobio. talvez o carteiro
talvez o senhor que vem ver
o contador da luz, ou entregar
publicidade onde finalmente
finalmente, os teus iogurtes
preferidos estão em promoção.
agora, que é o tudo e o nada que
te alegra e sabes que a felicidade
é uma coisa de se pôr dentro dos
livros.


fotografia: Vitor Dente

quarta-feira, 5 de abril de 2017

esta janela muito larga
e o gato esticado no
último raio de sol
um dia bonito com
vinho à mesa e um
livro com cheiro a
novo.

e tudo me falta.


fotografia: daqui

quanto de mim
para te deter?
para te trazer
ao meu peito
e adormecer.





terça-feira, 4 de abril de 2017

um deus tão idiota
como uma canção de amor
que me dê à boca
todos os significados.


segunda-feira, 3 de abril de 2017

é o peito que me dói
é o peito
de saber que é no teu colo
que o mundo começa.



fotografia:  Philip McKay




acredita em mim

quando te digo


que os teus olhos têm
a inclinação perfeita
do desejo.



blue is the warmest colour

uma dor
que não cabe
no infinito


rituais


dedos para atear incêndios
palavras que se acendem
debaixo da língua

as estrelas mais nuas
do que tu e eu
os astros, mentiras
de trazer por casa.

o pensamento mais
rápido do que a luz
do candeeiro velho

a boca à procura
de um lugar
para morrer



sexta-feira, 31 de março de 2017

como arrumar-te
dentro de mim
se eu não sei
arrumar nem
uma gaveta
se a minha vida
está cheia de
bugigangas
a alma mais
amarrotada do
que qualquer
das minhas
camisolas.
o sol a entrar
pela clarabóia
rasga-me as mãos
e se me dóis
como arrumar-te
sem me perder?



talvez seja isso


a minha tragédia
incompatível
com a tua paz.


sufoco do coração
ou
castelo de cartas.


fotografia: daqui

quinta-feira, 30 de março de 2017

não dizes amor.
dizes vai chover.
e quando me amas.
é como se chovesse.



fotografia: daqui


não dizes chuva
dizes amor
e quando chove
é como se me amasses.
este silêncio
que nunca foi manso
este silêncio
que nunca foi lento

puta que te agarra o sexo
e te pede vinte euros
para o táxi.

(que te diz baixinho:
não me leves a casa
sê a casa.
sê a casa)


fotografia: Troy Bradford

tu nem sequer
e eu nem sequer

nem sequer somos
nem sequer vemos
nem sequer raiz quadrada
de coisa nenhuma.

esperavas o quê?
noves fora nada.


quarta-feira, 29 de março de 2017

não precisas de voltar a colher o eco
da voz que te acorda devagar
junto à temperatura exagerada
do tímpano.

não precisas de hastear ausências,
encher a casa de coisas para fazer
escrever amor sempre que os lábios
rasgam as bochechas até sangrar.

não precisas, nunca mais,
de pronunciar o nome das caixas vazias
esconder no fundo do peito a trepidação
dos relógios.

o que tu precisas é de um ar tão puro
que te rebente os pulmões e te faça voar.


quinta-feira, 23 de março de 2017

imaginar um país em que os passeios
tenham a largura do mar, e as magnólias
preencham as estradas e as gargantas

da boca dos homens, larvas e sonhos
imaginar um país em que se cante
para acordar, para acender desejos

imaginar um cigarro que te queime
os lábios, um país sem palavras
e as mãos inquietas pescoço acima.



fotografia: daqui





quarta-feira, 22 de março de 2017

se um dia
eu bater de frente
comigo
eu bater de frente
com o carro
contra o muro
da razão
se um dia
eu bater de frente
com a mágoa
e aprender truques
de magia
para conquistar
homens sem voz
se um dia
eu bater de frente
comigo
e não me reconhecer.

vai acontecer.
podes crer
vais querer
vai acontecer


terça-feira, 21 de março de 2017

não basta sentir
é preciso cravar pedras
na pele
é preciso afundar os dedos
nos orgãos



segunda-feira, 20 de março de 2017

no dia em que morrer
preencham todos os vazios
com palavras
tal como fiz no dia em
que me matei



sexta-feira, 17 de março de 2017

guardar guardar guardar
as memórias
os dias limpos
a percorrer dedo a dedo
mão na mão
todos os ossos

guardar
até se tornar impossível
tal peso sobre os ombros

guardar
aguardar
guardar.

dobrar.
partir.


fotografia: Alexandre Katuszynski

quinta-feira, 16 de março de 2017

amei.te.

que mais posso dizer sobre ti?

que mais posso dizer sobre mim?

lábios e feridas.



fotografia:  Will Ellis

compra-me o jornal
senta-te aos pés
da minha cama
lê-me o jornal
notícias de cá,
notícias do lado de lá
do mundo
lê-me o horóscopo
diz-me se vai chover
lê-me o nome dos mortos
diz-me a data das missas
de sétimo dia
conta-me dos fetiches
nas páginas do relax.
e quantos pedreiros
são precisos
quantas empregadas
domésticas internas.
lê-me a classificação
do campeonato distrital
e os programas que vão
dar na televisão.
não me deixes morrer
sem saber tudo.

não me deixes morrer.


fotografia: amyjoamos

quarta-feira, 15 de março de 2017

obviamente falhamos
cheguei a pensar que os teus olhos
envelheceriam na cadeira do alpendre
a ler livros mais velhos do que nós
a ouvir música dos anos noventa
o cão, velho também deitado
aos teus pés e eu
deitada aos teus pés
junto ao cão

obviamente falhamos
a pergola gasta a cobrir
os vasos cheios de ervas
por florir, o barulho do motor
de um carro, ao fundo da rua.
pensei numa casa sem relógios
sem pulso, a envelhecer lentamente.

obviamente falhamos


fotografia: pich urdaneta

segunda-feira, 13 de março de 2017

que não me tenhas amado
um único dia da tua vida
que tenhas deixado morrer
todas as flores na minha rua
que tenhas atravessado
de faca em punho
todos os orgãos do meu corpo
eu compreendo.

mas a tua ausência não.


no espelho
todos os falhanços.
olhos nos olhos.


sexta-feira, 10 de março de 2017

a mim
basta-me
sacudir a terra dos joelhos
encarcerar o coração
atrás de todas as máscaras
e irremediavelmente
continuar



procurar nas mãos
os significados das coisas
simples
ver fugir entre os dedos
os desejos mais fundos
inclinar a cabeça para trás
deixar o cabelo escorregar
pelas costas da cadeira

principiar o mundo.


fotografia: Rachel Querrien

quinta-feira, 9 de março de 2017

e as flores
dentro do peito
quem cuida?


dorme como se o mundo tivesse acabado
e lá fora o pó nos atravessasse a garganta
o pó nos fechasse os olhos

dorme como se morresses de amor
no meio dos escombros e das folhas
escritas a lápis

dorme como se nos tivessemos esquecido
de cortar as unhas, de comprar o pão
de pagar a conta da luz, de fechar o carro

dorme como se não existissemos
o coração imundo e a boca fechada
dorme.




quarta-feira, 8 de março de 2017

a confusão das ruas
ou
os olhares invertidos
ou
o barulho dos carros
a descer a avenida
ou
alguém que te crava
um cigarro
ou
os seus dedos sujos
ou
a sua pele monstruosa
ou
o seu sorriso doce

olhar-te e ver-me
olhar-te e ver
a humanidade inteira
chorar para dentro
como uma menina
grande.


fotografia: Follia (Sconsiderato)

terça-feira, 7 de março de 2017

teremos sempre canções de amor
ainda que ao amor não tenhamos permitido nada
teremos sempre canções, meu amor.


segunda-feira, 6 de março de 2017

ir ao fundo
dos dias
lamber a seiva
experimentar a dor
das descidas



fotografia: Kaiserr


domingo, 5 de março de 2017

processos do esquecimento

dois dedos
a percorrer o peito

dois dedos
a embalar a morte

sorrir
a dois dedos
da tona da água


sexta-feira, 3 de março de 2017

no príncipio
como no fim
os dentes das feras
a latejar
dentro de mim


os joelhos esfolados
das musas
no riso ensurdecedor
dos poetas


fotografia: Robert Laugier

constrói
um labirinto
de estrelas
uma nuvem
salgada
para lamber
ao pôr do sol


fotografia: HelloBA

curva ligeira
à esquerda
cigarro aceso
mão na coxa
boca na boca



fotografia: Milo Alterio

quinta-feira, 2 de março de 2017

o fruto
arrancado pelos dedos
à boca
o furto dos sentidos



fotografia: Emir Ozsahin

enlouquecer
demasiado
deixar a loucura
domesticar-nos os gestos.



fotografia:  Elena K. - Self