sexta-feira, 31 de março de 2017

como arrumar-te
dentro de mim
se eu não sei
arrumar nem
uma gaveta
se a minha vida
está cheia de
bugigangas
a alma mais
amarrotada do
que qualquer
das minhas
camisolas.
o sol a entrar
pela clarabóia
rasga-me as mãos
e se me dóis
como arrumar-te
sem me perder?



talvez seja isso


a minha tragédia
incompatível
com a tua paz.


sufoco do coração
ou
castelo de cartas.


fotografia: daqui

quinta-feira, 30 de março de 2017

não dizes amor.
dizes vai chover.
e quando me amas.
é como se chovesse.



fotografia: daqui


não dizes chuva
dizes amor
e quando chove
é como se me amasses.
este silêncio
que nunca foi manso
este silêncio
que nunca foi lento

puta que te agarra o sexo
e te pede vinte euros
para o táxi.

(que te diz baixinho:
não me leves a casa
sê a casa.
sê a casa)


fotografia: Troy Bradford

tu nem sequer
e eu nem sequer

nem sequer somos
nem sequer vemos
nem sequer raiz quadrada
de coisa nenhuma.

esperavas o quê?
noves fora nada.


quarta-feira, 29 de março de 2017

não precisas de voltar a colher o eco
da voz que te acorda devagar
junto à temperatura exagerada
do tímpano.

não precisas de hastear ausências,
encher a casa de coisas para fazer
escrever amor sempre que os lábios
rasgam as bochechas até sangrar.

não precisas, nunca mais,
de pronunciar o nome das caixas vazias
esconder no fundo do peito a trepidação
dos relógios.

o que tu precisas é de um ar tão puro
que te rebente os pulmões e te faça voar.


quinta-feira, 23 de março de 2017

imaginar um país em que os passeios
tenham a largura do mar, e as magnólias
preencham as estradas e as gargantas

da boca dos homens, larvas e sonhos
imaginar um país em que se cante
para acordar, para acender desejos

imaginar um cigarro que te queime
os lábios, um país sem palavras
e as mãos inquietas pescoço acima.



fotografia: daqui





quarta-feira, 22 de março de 2017

se um dia
eu bater de frente
comigo
eu bater de frente
com o carro
contra o muro
da razão
se um dia
eu bater de frente
com a mágoa
e aprender truques
de magia
para conquistar
homens sem voz
se um dia
eu bater de frente
comigo
e não me reconhecer.

vai acontecer.
podes crer
vais querer
vai acontecer


terça-feira, 21 de março de 2017

não basta sentir
é preciso cravar pedras
na pele
é preciso afundar os dedos
nos orgãos



segunda-feira, 20 de março de 2017

no dia em que morrer
preencham todos os vazios
com palavras
tal como fiz no dia em
que me matei



sexta-feira, 17 de março de 2017

guardar guardar guardar
as memórias
os dias limpos
a percorrer dedo a dedo
mão na mão
todos os ossos

guardar
até se tornar impossível
tal peso sobre os ombros

guardar
aguardar
guardar.

dobrar.
partir.


fotografia: Alexandre Katuszynski

quinta-feira, 16 de março de 2017

amei.te.

que mais posso dizer sobre ti?

que mais posso dizer sobre mim?

lábios e feridas.



fotografia:  Will Ellis

compra-me o jornal
senta-te aos pés
da minha cama
lê-me o jornal
notícias de cá,
notícias do lado de lá
do mundo
lê-me o horóscopo
diz-me se vai chover
lê-me o nome dos mortos
diz-me a data das missas
de sétimo dia
conta-me dos fetiches
nas páginas do relax.
e quantos pedreiros
são precisos
quantas empregadas
domésticas internas.
lê-me a classificação
do campeonato distrital
e os programas que vão
dar na televisão.
não me deixes morrer
sem saber tudo.

não me deixes morrer.


fotografia: amyjoamos

quarta-feira, 15 de março de 2017

obviamente falhamos
cheguei a pensar que os teus olhos
envelheceriam na cadeira do alpendre
a ler livros mais velhos do que nós
a ouvir música dos anos noventa
o cão, velho também deitado
aos teus pés e eu
deitada aos teus pés
junto ao cão

obviamente falhamos
a pergola gasta a cobrir
os vasos cheios de ervas
por florir, o barulho do motor
de um carro, ao fundo da rua.
pensei numa casa sem relógios
sem pulso, a envelhecer lentamente.

obviamente falhamos


fotografia: pich urdaneta

segunda-feira, 13 de março de 2017

que não me tenhas amado
um único dia da tua vida
que tenhas deixado morrer
todas as flores na minha rua
que tenhas atravessado
de faca em punho
todos os orgãos do meu corpo
eu compreendo.

mas a tua ausência não.


no espelho
todos os falhanços.
olhos nos olhos.


sexta-feira, 10 de março de 2017

a mim
basta-me
sacudir a terra dos joelhos
encarcerar o coração
atrás de todas as máscaras
e irremediavelmente
continuar



procurar nas mãos
os significados das coisas
simples
ver fugir entre os dedos
os desejos mais fundos
inclinar a cabeça para trás
deixar o cabelo escorregar
pelas costas da cadeira

principiar o mundo.


fotografia: Rachel Querrien

quinta-feira, 9 de março de 2017

e as flores
dentro do peito
quem cuida?


dorme como se o mundo tivesse acabado
e lá fora o pó nos atravessasse a garganta
o pó nos fechasse os olhos

dorme como se morresses de amor
no meio dos escombros e das folhas
escritas a lápis

dorme como se nos tivessemos esquecido
de cortar as unhas, de comprar o pão
de pagar a conta da luz, de fechar o carro

dorme como se não existissemos
o coração imundo e a boca fechada
dorme.




quarta-feira, 8 de março de 2017

a confusão das ruas
ou
os olhares invertidos
ou
o barulho dos carros
a descer a avenida
ou
alguém que te crava
um cigarro
ou
os seus dedos sujos
ou
a sua pele monstruosa
ou
o seu sorriso doce

olhar-te e ver-me
olhar-te e ver
a humanidade inteira
chorar para dentro
como uma menina
grande.


fotografia: Follia (Sconsiderato)

terça-feira, 7 de março de 2017

teremos sempre canções de amor
ainda que ao amor não tenhamos permitido nada
teremos sempre canções, meu amor.


segunda-feira, 6 de março de 2017

ir ao fundo
dos dias
lamber a seiva
experimentar a dor
das descidas



fotografia: Kaiserr


domingo, 5 de março de 2017

processos do esquecimento

dois dedos
a percorrer o peito

dois dedos
a embalar a morte

sorrir
a dois dedos
da tona da água


sexta-feira, 3 de março de 2017

no príncipio
como no fim
os dentes das feras
a latejar
dentro de mim


os joelhos esfolados
das musas
no riso ensurdecedor
dos poetas


fotografia: Robert Laugier

constrói
um labirinto
de estrelas
uma nuvem
salgada
para lamber
ao pôr do sol


fotografia: HelloBA

curva ligeira
à esquerda
cigarro aceso
mão na coxa
boca na boca



fotografia: Milo Alterio

quinta-feira, 2 de março de 2017

o fruto
arrancado pelos dedos
à boca
o furto dos sentidos



fotografia: Emir Ozsahin

enlouquecer
demasiado
deixar a loucura
domesticar-nos os gestos.



fotografia:  Elena K. - Self